Admirar


Da Admiração, Da Afetação E Dos Nossos Possíveis Olhos Cansados:

“(...) a Admiração me parece a primeira de todas as paixões; e não tem oposto porque, se o objeto que se apresenta não tem em si nada que nos surpreenda, não somos afetados por ele e o consideramos sem paixão" (R. Descartes)

Quando foi que você se pegou sem palavras diante de algo ou alguém? O coração bateu mais forte, talvez não mais rápido, e naquele momento você tinha os sentimentos a flor da pele – o amor, a raiva, a alegria... Quando foi que você não só viu ou observou, mas experimentou com admiração? Eu espero, meu querido leitor, que isso não faça muito tempo.

E espero porquê estamos perdendo essa capacidade de sentir com os olhos, de sermos surpreendidos, como Descartes já apontava. O perigo dessa falta de admiração é que ela vai nos afastando de sermos afetados – e precisamos desta afetação. O outro precisa despertar em mim o que quer que seja; torço para que sejam coisas boas, na maior parte das vezes. Certas raivas e dores também são necessárias e estas, entre aqueles que amamos, são as que possivelmente nos farão melhores.

A indiferença é o oposto do amor, sou levado a pensar. A raiva e o ódio são, talvez, amores torcidos; com estes ainda há como se tratar. Mas não deixam de ser afetação. Quando não sou mais afetado pelo outro, a tragédia está completa: deixamos de ser pessoas e nos tornamos algo que não consigo ainda definir. Não animais, pois não podem ser indiferentes, são instintuais na maior parte da natureza. A tragédia da indiferença começa na falta de admiração, da surpresa diante do mundo.

A palavra no latim ajuda nesta reflexão: Admiratio – Olhar em direção ao maravilhoso. O sufixo Ad- indica direção, enquanto -Mirari é a qualidade de algo maravilhoso, do latim mirus, raiz da palavra milagre. Outros etimologistas dizem que a palavra é a junção de Ad-, “a” e -mirare, “espantar-se com, admirar”. O espanto é o momento que uma brecha em nós é aberta e somos levados a perceber que não sabemos tudo, não entendemos muito e que as possibilidades são infinitas. Gosto de pensar na experiência Bíblica de Jó, nos últimos capítulos de seu livro. Quando passa por uma sabatina diante do Deus Todo-Poderoso, só pode dizer: “Eis que sou vil; que te responderia eu? A minha mão ponho à boca. Uma vez tenho falado, e não replicarei; ou ainda duas vezes, porém não prosseguirei.” Não havia resposta naquele momento, só espanto.
Hoje é comum estarmos atrás de algo “fora da rotina”. Sinal de que estamos mais acostumados do que pensamos e menos admirativos do que poderíamos estar. O espetáculo está nos finais de semana: fora de lá, só há o cinza e o repetitivo. Otto Lara Resende, na maravilhosa crônica “Vista Cansada”, arremata: “Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. É por aí que se instala no coração o monstro da indiferença.”

O maravilhoso está mais próximo do que podemos imaginar. Não espere até o final de semana para ter, quem sabe, uma oportunidade cosmética que, em farelos, alimenta a alma. Admiração também está no re-ver: o sol ou o nublado, o pássaro que canta ou a moldura da janela, as crianças, os amigos e seus detalhes, o livro... Eu torço, novamente afirmo, para que seus olhos não sejam opacos; sejam vivos, seja espantosos. Que o cotidiano seja um lugar de “pequenos milagres” e que não haja um dia, nem sequer um, em que você possa dizer: Não vi nada diferente. Sempre há, meu querido leitor...

Sempre há.

                                                     

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