Preocupação


 

Escrevo com a preocupação sob meus dedos. Nas minhas costas, em minhas costelas: em todos os lugares cartograficamente possíveis de elencar e também naqueles que são invisíveis, não sendo por isso intangíveis. Minha alma fervilha baixo, cheia, e não aquieta à espera da próxima gota a encher o já farto vasilhame de sentimentos. Sempre cheio, e cada gota conta o excesso de tudo que não sei dizer.

O que dizem por aí é que devo relaxar, aproveitar a vida, viver com mais calma. Sinto por você, leitor, se veio até aqui esperando algo dessa espécie. Acredito que o escritor tem um compromisso existencialmente ético com o leitor, que consiste em escrever tal como lhe vem a percepção, não como desejaria escrever. A escrita é uma possibilidade de existir, e se autêntica, não se furta a dureza da realidade – qualquer que ela seja.

Preocupar, pré-ocupar em algo, é um movimento comum em todos nós. Nós desenvolvemos essa bela capacidade de nos projetar ao futuro e ao passado sem sair do presente – o que pode deturpar completamente o conceito de presente. Nosso ser se movimento entre os tempos da nossa existência e a preocupação pode fazer essa ‘viagem’ sem muitas dificuldades: no passado, se preocupa com a culpa, no futuro com a imprevisibilidade. Seja para lá ou para cá, estamos enchendo-nos de tempo, de sentimentos.

Em uma ou outra ocasião, nos enchemos tanto que derramamos toda a nossa preocupação: nos tornamos quietamente movimentados. Atormentados por tantas coisas dentro de nós, mas sem nenhum movimento exterior. Preocupamos com a morte, com a crise, com o fim, com o esperado e o não esperado: tudo isso nos faz roer as unhas, balançar as pernas, suar frio e perder o sono.

Parece que
é de nossa situação no mundo estar preocupados. Ainda parece que estamos passando por preocupações em níveis e em situações diferentes.  Enquanto escrevo, penso em minhas preocupações, e mesmo racionalizando-as não encontro sossego a elas. São como móveis que são organizados num quarto, mas como mágica, se movimentam aleatoriamente para outros espaços que não havia deixado.

A preocupação não irá embora, ela irá se mover. Irá crescer ou diminuir, irá me tomar ou se assentar comigo para tomar um café. Na existência que sigo, confesso que há horas em que choro sem ter motivo claro, mas com um aperto interminável no peito. Há tanto a se preocupar no mundo! Há tanto para se preocupar no meu mundo... E, neste mundo, quando as nuvens da preocupação se instalam como fortes nuvens parecidas de duro metal, não consigo lembrar de nada.

Porém, alguns raios de sol escapam. Eles escapam principalmente quando alguns vêm e se juntam, dialogam e tomam a dor comigo. Não querem me dizer para relaxar ou para aproveitar a vida. Eles escolhem enfrentar comigo a tempestade, sussurrando canções para trazer o sol.

E, quando sozinho, ainda consigo relutantemente solfejar aquelas músicas. As tempestades não passam, o céu não se abre magicamente. Porém, em alguns momentos, posso sentir o sol. E talvez isso me fortaleça para outras nuvens que virão. Nada mais adequado à um texto sobre preocupação do que terminar preocupando-se com a vinda dessas nuvens. 

2 comentários:

  1. Essa reflexão me chegou em tempo oportuno ;)

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    Respostas
    1. Fico feliz Pri que o texto tenha ajudado a refletir.

      Obrigado pela leitura.
      Volte sempre! =)

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